quarta-feira, 14 de julho de 2004

Janela

Era domingo. Ela olhava o mundo, cotovelos escorados no parapeito da janela. Os olhos já estavam cansados de tanto ler, exaustos de ver palavras imóveis que desenhavam em sua mente um mundo feito de imaginações e lembranças. Televisão, nem pensar. Se já não era uma telespectadora freqüente, aos domingos não suportava assistir ao que passava naquela tela de 20 polegadas, diferentemente de seu marido, que não abandonava o sagrado futebol e estava, naquele mesmo momento, resfolegando no sofá. Decidiu assistir ao mundo real, sem intermediações escritas ou audiovisuais. E foi quando ali estava, parada à janela, que seus olhos foram perdendo de foco tudo o que se encontrava à sua frente e se voltaram para dentro, para seus pensamentos. Apesar de estar com os olhos perfeitamente abertos e saudáveis, não enxergava mais. Uma cegueira sem cegar, um enxergar sem ver. Se os seres humanos são passíveis de divagações e devaneios em qualquer dia, aos domingos essa probabilidade parece ser multiplicada por 100. Ou menos, ou mais, depende de cada um. O fato é que paira no ar do domingo uma névoa de leve melancolia e introspecção. Começou, então, a se perguntar: onde estavam as aventuras e alegrias de sua vida? Onde estava aquele namorado galante, que a surpreendia com flores, bombons e outros mimos sem nenhum motivo aparente? Onde estava o noivo entusiasmado, que mal podia esperar pelo dia de casamento para poder ficar, finalmente, a sós com sua mulher? Onde estava o marido ardentemente apaixonado da lua-de-mel, que desejava apenas estar com ela entre os lençóis da cama? Enquanto fazia todas essas perguntas a si mesma, ela nem percebera que o jogo de futebol estava no intervalo e seu marido havia ido à cozinha, só o viu quando ele parou ao seu lado, com um prato em que estava uma laranja descascada e cortada ao meio em uma mão e um copo de suco de maracujá na outra. Não adianta perguntar por que ela gostava de comer uma fruta e beber o suco de outra, nem ela mesma saberá explicar. Entregou o prato e o copo à mulher e deu-lhe um beijo na testa. Ele virou-se, voltando à sua posição passiva no sofá. Ela respirou fundo, expulsando dos pulmões o ar pensativo de domingo. Foi quando se deu conta de que ali não estava mais o namorado impetuoso, o noivo impaciente ou o marido arrebatado. Quem estava deitado naquele sofá de um bege clarinho e almofadas grandes e confortáveis era o homem com quem passara por momentos tristes e felizes, assim como qualquer outra pessoa, o que acontece é que sempre se olha apenas para a felicidade alheia e a infelicidade própria. Quem lhe entregara um prato com uma laranja descascada e partida ao meio e um copo de suco de maracujá era o homem que ela conhecia como ninguém; aquele que sabia das suas idiossincrasias como nenhum outro; aquele que deitou-se, abraçando-a, enquanto ela chorava a morte da mãe e só se levantou quando ela mesma não conseguia mais chorar; aquele que sempre se preocupa em não deixar um sapato emborcado dentro de casa por saber que a mulher não gosta, apesar de não compartilhar nem um pouco dessa superstição. Ali estava o homem que ela amava e que a amava também.

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